GUERRA COMO PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS


A destruição da democracia pelas empresas militares privadas

Nos últimos anos os negócios envolvendo atividades militares se transformaram numa área econômica de enorme crescimento, que não apenas registra lucros exorbitantes, mas que também alterou duradouramente a política mundial. Empresas militares privadas já operam em todos os continentes e todas as regiões de conflito no mundo. Mais de um milhão e meio de pessoas trabalham por sua conta.

Escândalos como as torturas de soldados na prisão de Abu Ghraib, o assassinato de civis e as fraudes em contratos na guerra do Iraque, a denúncia de que soldados mantinham escravas sexuais durante o conflito nos Bálcãs, voltaram os olhos da imprensa mundial para o novo segmento que ganhava espaço cada vez maior no cenário político-econômico mundial: os novos mercenários e as empresas militares privadas. Empresas como a Blackwater e a DynCorp, entre outras, protagonizaram muitos desses obscuros episódios. O experiente e combativo jornalista alemão Rolf Uesseler traz aos leitores no presente livro um panorama do atual sistema de prestação de serviços por parte de empresas militares privadas — serviços que incluem desde logística e abastecimento de soldados no front até a pilotagem de caças e tanques da mais moderna tecnologia; desde a determinação de alvos militares até a execução de missões de combate propriamente ditas. Serviços antes desempenhados exclusivamente pelo Estado, e que hoje não apenas são terceirizados como também podem ser contratados por quem quer que possa pagar o seu alto preço: Estados, governos e serviços secretos, mas também senhores de guerra, grupos rebeldes e grandes corporações.

Os “soldados privados” encontram-se em uma espécie de “limbo” dentro do sistema legal, a meio caminho entre as concepções de “civil” e “militar”. Desta maneira, como observa o autor, operam dentro de um campo de tolerância advindo da falta de leis de regulamentação específicas, tolerância que não raro se converte em impunidade.

Portanto, é dentro desta conjuntura movediça que Uesseler procura definir e trazer a público o que são, como e onde agem esses soldados cuja condição é sempre limítrofe com o mercenarismo. Retorna às origens históricas dos guerreiros mercenários, descrevendo sua trajetória até esse ressurgimento, sob a sombra do próprio Estado, após a dissolução do Pacto de Varsóvia. Na economia globalizada, a terceirização é inerente aos empreendimentos. No que se refere à segurança, não é diferente. Das explorações de petróleo ao combate à guerrilha colombiana, das guerras civis africanas às missões humanitárias da Cruz Vermelha, as empresas militares privadas, em um negócio que movimenta bilhões de dólares, prestam seus serviços e transitam com liberdade entre a eficiência e a falta de escrúpulos.

Na esteira das discussões trazidas à baila pelo best-seller Blackwater, de Jeremy Scahill (ed. bras. Companhia das Letras, 2008), chega ao público brasileiro uma análise abrangente sobre a questão, que procura causas e consequências do processo de privatização de atividades militares. Rolf Uesseler mostra os motivos para o crescimento vertiginoso dessas firmas, descreve suas múltiplas atividades e adverte enfaticamente sobre os perigos que elas representam: a corrosão do monopólio da força por parte do Estado, o surgimento de terras-de-ninguém jurídicas e a suspensão dos direitos dos povos. 

Tal como analisou um especialista norte-americano em questões militares, o exército dos Estados Unidos decidiu, evidentemente, permitir o ingresso de pessoal contratado mesmo nas ações de combate propriamente ditas. Por isso, é de se supor que, no futuro, a condução da guerra baseada em tecnologias de informação (Information Warfare) venha a ser dominada pelos “novos mercenários”.  A dependência das forças armadas em relação às armas de alta tecnologia faz com que elas não sejam mais capazes de entrar em ação sem o auxílio de pessoal privado. Às vezes chegam a ser necessárias até mesmo muitas empresas para tornar uma unidade militar capaz de entrar em ação. Com isso, tem crescido significativamente o número de funcionários privados [...] nos “campos de batalha”. Essas pessoas tornaram-se parte integrante das próprias operações militares. Milhares de “civis” que trabalham nas bases de operações a fim de tornar real a “guerra digitalizada” transformaram-se, assim, em soldados. O direito civil continua tratando-os como não-combatentes e os conta como parte da população civil; os adversários de guerra, porém, vêem neles o que realmente são — partes da máquina de guerra. Com a inclusão de soldados privados na condução da guerra abriu-se uma zona cinzenta perigosa, povoada por pessoas sem um status jurídico claro. (p. 164)

          

                                                                                                   


ROLF UESSELER

Rolf Uesseler nasceu em 1943, em Dortmund, Alemanha. Estudou economia, psicologia e jornalismo. Trabalha, desde 1979, como pesquisador e jornalista independente em Roma, onde atuou por mais de uma década no movimento italiano contra a máfia. Estuda principalmente as atividades ilegais na economia mundial, o crime organizado e a economia informal; as privatizações e o processo de “desdemocratização”; as relações da máfia e com o Estado na Itália. Desenvolveu instrumentos de análise contra a lavagem de dinheiro e as transações monetárias ilegais. Publicou inúmeros artigos em revistas italianas e alemãs. Entre seus livros publicados estão: Mafia: Mythos, Macht, Moral [Máfia: Mito, Poder, Moral], 1987 e Herausforderung Mafia. Strategien Gegen Organisierte Kriminalität [Desafio Máfia.Estratégias Contra o Crime Organizado], 1993.