
Grande evento político e social e marco inicial de
democracia como a entendemos hoje, seu símbolo máximo é a tomada da Bastilha em
Paris no ano de 1789 pela população ultrajada por tempos infindáveis de
desmandos, humilhação e miséria. Os prisioneiros foram libertados e a
fortaleza-prisão, destruída (urbanisticamente, pena pela perda desta
interessante edificação sui-generis no meio da capital). Hoje parece ter
voltado a moda de destruir monumentos politicamente incorretos.
Enfim, a Revolução Francesa e sua grande explosão popular do
14 de Julho tem um duradouro significado emblemático para o estabelecimento da
democracia moderna, amparada pelo sufrágio universal instaurado cerca de meio
século mais tarde ao cabo de um trabalho social, político e jurídico
desembocando nas tensas jornadas (mais uma vez) revolucionárias de 1848. O
sufrágio democratizado conferiu forma, simbologia e materialidade, bem como
condições de ação, à democracia nascedoura, como diz a professora Letícia
Canêdo na obra organizada por ela: O sufrágio universal e a invenção democrática (e
que recomendamos a seguir também!), o que viria a ser completado
pelos “apetrechos” dentro e fora do espaço eleitoral — listas, urnas, cabines,
regulamentação eleitoral, partidos, propaganda, sondagens.
Nesse sentido, apresentamos a seguir um conjunto de obras do
catálogo da Estação Liberdade relacionado à Revolução Francesa e à
democracia amparada no sufrágio universal — tão sujeito a
aperfeiçoamentos! Dessa vez, fazemos questão de indicar as obras
começando pelo nome das/dos autora(o)s. Eles que fazem a festa. No 14
juillet ou nas outras!

MARGUERITE DURAS, Cadernos de guerra e outros textos
Dos arquivos
pessoais e inéditos da grande escritora tão ligada à Indochina.
Realço a parte da obra que relata o retorno do companheiro dela, o também
escritor Robert Antelme, do campo de concentração na Alemanha, e o
reencontro de ambos. Me abolou até o mais profundo dos fundamentos.
FRANÇOIS EMMANUEL, A questão humana
Um
mergulho muito sensível e sui generis nos recônditos da
memória nazifascista, talvez o oposto óbvio da democracia liberal
e libertária. François Emmanuel é um ótimo escritor belga que merece
mais reconhecimento.
PIERRE MICHON, Vidas minúsculas
Autor gigante, um
dos grandes das letras francesas, torna universais pequenas vidas de província.
Passagem marcante pela Flip quando deste lançamento. Uma arte da
escrita admirável, uma personalidade autoral frequentemente protagonista de
causos. Grande lance tê-lo conhecido.
RESTIF DE LA BRETONNE, Noites revolucionárias
Outro
que não fechou de corpo e alma com a revolução. Um painel
cinematográfico avant la lettre das jornadas da tomada da Bastilha,
relato límpido e preocupado, de corpo presente. Traz os fundamentos.


ÉMILE ZOLA, Germinal
A exploração do homem
pelo homem em seu estado mais bruto, a literatura realista e social em seu
apogeu, tomando uma mina de carvão como cenário. Uma tensão
subjacente muito bem resolvida enquanto técnica literária. A obra é
um monumento, ponto final. E muito atual.

RACHID BOUDJEDRA, Topografia ideal para uma agressão
caracterizada
O múltiplo exílio de um imigrante em Paris, mais exatamente
em seu metrô. Autor argelino escrevendo em árabe e francês, entre as duas
culturas, estava jurado de morte quando veio ao Brasil para o lançamento. Ao
jantarmos, serviço secreto protegendo a entrada do restaurante. Ser escritor
pode ser profissão perigosa. Uma pessoa maravilhosa, a quem devo
outra publicação no Brasil, quem sabe traduzindo do árabe deste vez.

ÉRIC HAZAN, A invenção de Paris — A cada
passo uma descoberta
Historiador, editor, escritor (a ordem é aleatória).
Grande companheiro de jornadas, cometeu aqui linda obra sobre Paris. A sua
Paris: a Paris das revoltas, dos bairros pobres, das ruelas sublevadas, dos
bairros proletários, das barricadas improvisadas. Mas a Paris também dos
escritores e poetas, dos pintores, dos urbanistas impiedosos, e dos
principais fotógrafos que clicaram Paris nos primórdios desta arte, de Atget a
Doisneau. Não é a Paris dos Champs-Elysées. Este editor o usou diversas vezes
como guia histórico e urbanístico. Belo presente para
viagens pós-quarentena.

CHARLES DICKENS, Um conto de duas cidades
O grande
narrador britânico resolve suas pendências com a França revolucionária,
e contrapõe as duas grandes capitais, Londres e Paris, sob pano de fundo
da época do Terror. Personagens memoráveis como de costume no inventor de David
Copperfield, mas substância histórica significativa também. A guilhotina sempre
à espreita…

ATIQ RAHIMI, A balada do cálamo
Outro exilado que a
França da declaração dos direitos humanos acolheu. Aqui, Atiq é memorialista,
calígrafo, poeta, desenhista. Relatos fragmentados de seu destino
atípico, ele que levou o prêmio Goncourt com seu primeiro romance diretamente
em francês, e que continua sua tripla carreira de romancista, cineasta e artista
plástico. E vindo ao Brasil sempre que possível. O franco-afegão arrasou
na Flip em 2009.

LETICIA BICALHO CANÊDO (org.), O sufrágio universal e
a invenção da democracia
Esta volumosa obra oferece diversas
abordagens analíticas e estudos de caso referentes ao sufrágio universal,
seu histórico e suas problemáticas. Para quem quiser aprofundar, e talvez
tentar entender o que nos acomete como nação no momento, ainda que
publicada em 2005. Com contribuições tão diversas quanto de José de
Alencar e Pierre Bourdieu, não podemos deixar de recomendar.
VICTOR HUGO: Noventa e três
Assim como o Conto de
duas cidades, de Dickens, ambientado no período mais autofágico
da Revolução Francesa, revolucionários e monarquistas de digladiam
sob os projetores da história à espreita de quem os manuais consagrarão. O
derradeiro Victor Hugo, leitura fenomenal, antídoto para tempos sombrios.
No prelo.

STENDHAL (Henri Beyle), Armance
Os amores de Octave e
Armance na Paris aristocrática que a revolução solaparia. Ótima
ambientação de fim de festa. Já se antevê o genial autor de O vermelho e o
negro.
HONORÉ DE BALZAC: O pai Goriot e Eugénie
Grandet
Gosto de contrapor estas duas obras simbólicas da Comédia humana.
Marcadamente pós-revolucionárias, uma retrata a Paris das futilidades da vida
social e dos aproveitadores, a outra, a província sob a Restauração, em
que o dinheiro e a ambição permeiam o desenvolvimento de personagens
complexos e nada maniqueístas.

CHARLES PÉPIN, As virtudes do fracasso
Coloco aqui
como matéria para reflexão: a Revolução Francesa foi um avanço
ou um fracassado passo em falso a alimentar suas diversas fases,
de emancipação popular e o enterro na monarquia ao Terror e a guilhotina a
pleno vapor? Parafraseando o título de Pépin, em todo fracasso há
virtudes. Que o digam a instauração do sufrágio universal, a
liberdade de imprensa, a noção de igualdade perante a lei e o Estado…




GUSTAVA FLAUBERT, Bouvard e Pécuchet
Duvidar da
ciência pode estar na moda, mas no caso temos uma sátira adorável da crença irrestrita no novo. Dois personagens simpaticamente medíocres
desconfiam de tudo e de todos, inclusive de si mesmos. Com Balzac, Victor
Hugo, Émile Zola e Stendhal, temos o nobre quinteto do século XIX
literário francês, posicionado de ambos os lados das barricadas.

JEAN DE LA FONTAINE, com MARC CHAGALL, Fábulas
Em
notável tradução de Mário Laranjeira. As inspiradas e sempre pedagógicas fábulas
de La Fontaine interpretadas pelo grande pintor russo. As chapas, dispersas,
foram reunidas para esta edição comemorativa, a cores e com capa dura. Edição
comentada. Também este, um belo presente.

SERGE FAUCHEREAU, O cubismo
Quem diz França, diz cubismo,
não é por menos. Esta edição é um fogo de artifício para os olhos e a mente.
Reproduções raras neste edição inteiramente colorida, capa dura. Os espólios
Picasso não soltam o grão facilmente, portanto recomendamos que se aproveite
esta festa cubista puxada por Picasso, mas também tendo Braque, Juan Gris,
Sonia Delaunay, Guillaume Apollinaire e muita/os outra/os como convidados ao
baile do 14 de julho.
VICTOR HUGO, O último dia de um condenado
Não sabemos
nada sobre o condenado à morte, mas ficamos sabendo de tudo das horas antes de
sua execução, em narração do próprio. Um panfleto ensurdecedor contra uma
prática que seria abolida apenas em 1980 na França, 150 anos depois deste
livro. Edição prefaciada e comentada.


PAUL NIZAN, com JEAN-PAUL SARTRE, Áden,
Arábia
Termino esta relação com uma pequena maravilha de um filósofo
viajante quase esquecido. No caso, uma viagem à mítica Aden, na confluência de
continentes e de oceanos. O longo prefácio-homenagem de Sartre é antológico,
uma declaração de amor literário.
A. B.