ALÁ E AS CRIANÇAS SOLDADOS 

Um dos principais autores de língua francesa da África (Costa do Marfim) nos leva a um dilacerante mergulho num continente com estratos sociais inteiros em decomposição, tomando-se como exemplo a ignomínia de crianças-soldados. Centrada na figura de Birahima, um menino que se envolve nas guerras tribais africanas quando, ao ficar órfão, atravessa parte do continente em busca da tia. O autor consegue abordar com um humor cáustico e extremamente eficaz os conflitos da Libéria e de Serra Leoa ocorridos nos anos de 1990.

De um lado temos os cacos de um continente em decomposição moral, social e política e, do outro, um acerto de contas de um dos maiores autores da África com a língua do colonizador, “não adaptada para apresentar as realidades africanas”. O resultado nos chega num dilacerante road book africano de proporções absolutamente farsescas (“Eu aumento a realidade para que ela tome uma dimensão aceitável. O humor permite colocar distância, enfrentar a antropofagia, o modo pelo qual as guerras são praticadas, como as pessoas morrem.” – Magazine littéraire, set. 2000), no qual nenhuma ferida fica intocada, e elas são inúmeras. Alguns exemplos saídos diretamente da fértil imaginação de Ahmadou Kourouma – mas, como ele mesmo diz, não precisa inventar nada, é só ler os jornais: orfanatos e asilos que freiras defendem de metralhadora em punho, sessões de desenfeitiçamento “feitas só com o coronel Papai bonzinho durante horas. Diziam que durante aquelas sessões Papai bonzinho ficava pelado e as mulheres também”; enfim, onde as putrefatas frentes guerrilheiras e os bandidos alçados à chefia de Estados sangrados são quixotescas paródias dos movimentos de libertação dos anos 60 – os Nkrumah, Lumumba e Nyerere e outros pais da independência africana certamente devem recorrer a todos os fetiches possíveis em seus túmulos contra gente da laia dos Samuel Doe, Charles Taylor, Foday Sankoh, que mais recentemente andaram ocupando as manchetes da imprensa mundial.

Nesse alucinante périplo por vários países da África Ocidental, o pequeno narrador Birahima nos leva, com a importante ajuda de quatro dicionários que herdou e que lhe servem para readaptar a língua do branco “forjada numa civilização cristã, por espíritos lógicos”, em sua longa busca por uma tia sumida na Libéria de todos os males. Viagem que ele empreende em companhia da obrigatória Kalachnikov e do inseparável Yacuba, o feiticeiro falsificador de dinheiro que sempre achará uma saída salvadora nos momentos de maior perigo. Mas mesmo os feitiços, que na hora do vamos ver acabam funcionando melhor do que dinheiro – real ou falsificado, mas qual a diferença em países em que tudo é simulacro –, devem estar falhando, para nos vermos frente a tamanha desagregação. E aí vem de novo Kourouma, com seu sábio faro de ancião da casta dos guerreiros-caçadores, como indica seu nome: “Se os africanos realmente têm o poder que a magia lhes promete, não teriam aceito nem a escravidão, nem a colonização.” E nem, mais recentemente, teriam tolerado essas guerras de desequilibrados empregando crianças-soldados descritas com eficientíssimo sarcasmo por Ahmadou Kourouma. Faforo! Gnamokodê!


LEIA UM TRECHO DA OBRA 


SOBRE A COLEÇÃO LATITUDE

Nossa intenção é dupla: abrir uma janela atualizada e dinâmica, dentro do enfoque multicultural que norteia a Estação Liberdade, para o que há de melhor na literatura dos diversos países e regiões que contribuíram para o florescimento desta importante língua literária e, ao mesmo tempo, oferecer um espaço para autores, obras e editoras nem sempre contempladas pela lógica do mercado, seja dentro ou fora do Brasil. A coleção conta com o apoio dos Ministérios das Relações Exteriores da França, da Suíça e do Canadá para alguns títulos.


          

AHMADOU KOUROUMA 

Ahmadou Kourouma nasceu em 24 de novembro de 1927, na Costa do Marfim. Na época de estudante, suas atividades políticas fizeram com que ele fosse enviado à força para o corpo expedicionário francês na Indochina. Após independência, a oposição de Kourouma ao regime de partido único Houphouët-Boigny fez com que ele fosse exilado. Kourouma passou pelo exílio em diversos países: Argélia (1964-1969), Camarões (1974-1984) e Togo (1984-1994). Depois de terminar seus estudos de matemática em Paris e Lyon, escreve Les Soleils des indépendances (1968), uma impiedosa sátira política, a partir da qual foi reconhecido como um dos escritores mais importantes do continente africano. Publicou ainda En attendant le vote des bêtes sauvages (1998, romance vencedor do Prix du Livre Inter), Monnè, outrages et défis (1990, romance) e Le diseur de vérité (1974, peça de teatro). Recebeu o Prêmio Renaudot 2000 por Alá e o Prêmio Jean Giono pelo conjunto de sua obra. Ahmadou Kourouma faleceu em Lyon, na França, em dezembro de 2003.


Livro
Tradutor Flávia Nascimento
Formato 14x21cm
Páginas 232
ISBN 978-85-7448-082-4

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