As narrativas de Jun’ichiro Tanizaki
Texto de Andrei Cunha, Ariel de Oliveira e Lídia Ivasa, tradutores de A Ponte Flutuante dos Sonhos seguido de Retrato de Shunkin, de Jun’ichiro Tanizaki


As duas narrativas do volume foram escritas em épocas bastante diferentes da carreira de Tanizaki. Retrato de Shunkin é de 1933; A Ponte Flutuante dos Sonhos só foi publicada em 1959, mas começou a ser escrita em 1954. Entre as duas novelas, houve a Segunda Guerra e a mais importante experiência estética da vida de Tanizaki: a tradução de Genji Monogatari para o japonês moderno.




 
Retrato de Shunkin é um interessante experimento estético, característico da primeira metade da carreira de Tanizaki, que inclui uma meditação filosófica sobre a verdadeira natureza do êxtase. Como em outros textos do mesmo autor, a figura do artista e a figura do cego são postas lado a lado como diferentes faces da comunhão com a essência do belo. Na tradição japonesa, o músico ou poeta cego tem lugar de destaque, em especial os monges-bardos que criaram a vasta História dos Heikes. Tanizaki retoma esse elemento histórico e o recria à sua maneira, dando ênfase a uma espécie de sensorialismo que vai além do erótico, sugerindo que o estímulo intenso dos sentidos levaria a uma espécie de contato direto com verdades absolutas, de difícil compreensão para aqueles que enxergam normalmente.



 
Tanto Retrato de Shunkin como A Ponte Flutuante dos Sonhos fazem uso de um recurso muito comum nas obras de Tanizaki: o narrador pouco confiável. Nas duas histórias, esse mecanismo pode ser lido como uma metáfora da impossibilidade da total compreensão da figura feminina, descrita como impenetrável e mutante, ao mesmo tempo. Trata-se também de uma forma de contar a história com uma ênfase naquilo que não é dito, e que o leitor deve “compreender” ou “complementar” a partir de fragmentos de narrativa, uma característica tanto do estilo de Tanizaki como da literatura japonesa de uma forma geral.
 
A Ponte Flutuante dos Sonhos é uma narrativa composta no estilo tardio do autor, após a guerra, depois da publicação de seu livro mais importante (As Irmãs Makioka). Tanizaki teve a ideia de escrever A Ponte após finalizar a sua segunda tradução de Genji Monogatari. A Ponte Flutuante dos Sonhos que dá título à novela é o nome do último capítulo da importante obra narrativa de Murasaki Shikibu. O texto, ainda que curto, demonstra um impressionante poder de síntese de um grande número de temas da literatura clássica: o jovem que se apaixona pela segunda esposa do pai, o erotismo sensorial dos elementos da natureza; a simbologia clássica das plantas, animais, flores, rios, montanhas.
 
O tema do filho indesejado é comum às duas narrativas. A Ponte tem também inúmeros elementos autobiográficos: a propriedade em que o narrador vive é muito semelhante à residência de Tanizaki em Kyoto (que hoje é um museu, aberto à visitação). A esposa de Tanizaki foi obrigada a fazer um aborto nessa mesma época, e uma das explicações propostas pelos estudiosos da sua vida é de que foi Tanizaki que decidiu que ela não teria filhos, pois desejava tê-la apenas para si.O fantasma desse filho que ele não teve — ou não quis ter — assombra seus diários da época, e pode ter sido transfigurado para a narrativa na forma do irmão que o narrador perdeu.




 
Por outro lado, tanto Shunkin como A Ponte propõem uma idealização da figura do artista, atrás da qual é possível entrever a figura do próprio Tanizaki, na maneira estilizada como ele gostaria de ser visto pelo mundo. Na sua concepção, digamos, decadentista, o artista tem permissão para ser hedonista, para embriagar os próprios sentidos com os estímulos sensoriais da natureza, do erotismo, do luxo e da arte, e não deve satisfações ao mundo por suas ações, mesmo que elas sejam vistas como inaceitáveis do ponto de vista da sociedade. O Japão de Tanizaki está repleto de espíritos, textos antigos e fantasmas, que muitas vezes são mesmo capazes de ditar as ações das personagens.

 

 

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