Hans Fallada e a resistência das pessoas comuns
Na última quarta-feira, 17/4, a Estação Liberdade, em parceria com o Goethe-Institut São Paulo, realizou uma mesa-redonda dedicada ao livro MORRER SOZINHO EM BERLIM, do autor alemão Hans Fallada

O livro, composto pouco depois da 2ª Guerra Mundial é, em essência, um livro sobre a memória daqueles que resistiram ao horror de mãos vazias, das formas como puderam, contra uma força totalmente desproporcional. 

Anja Riedeberger, diretora de serviços de informação para a América Latina do Goethe-Institut, abriu a mesa e deu as boas-vindas para os cerca de 40 presentes. Angel Bojadsen, diretor editorial da Estação Liberdade, apresentou brevemente o livro e lembrou que o Goethe, na época da ditadura militar no Brasil, quando sua sede ainda era na rua Augusta, teve um importante papel para a contracultura, exibindo filmes que não tinham acolhida em mais nenhuma sala no país. 

A tradutora Claudia Abeling contou um pouco do seu trabalho com o livrão (a edição brasileira ficou com 640 páginas), seu “companheiro inseparável” no ano de 2015, quando ela se dedicou a sua tradução. Claudia explicou que o livro é escrito em um alemão “direto”, sem as duplas adjetivações ou as inversões de frases, o que facilitou a versão brasileira. Outra marca que domina o texto de Hans Fallada é o dialeto berlinense. Neste caso, no entanto, pela impossibilidade de carregar o “sotaque” entre as línguas, a opção foi usar um discurso bem coloquial e expressões idiomáticas exageradas ou antigas para emular o tom. 

As falas agressivas dos oficiais da SS, SA e da Gestapo, bem como as hierarquias destas organizações, foram outro desafio. Termos como Obbersturmbanhführer, uma patente sem equivalência exata no Brasil, foram adaptados (“tenente-coronel da SA”) para facilitar a leitura. Quando os oficiais da Gestapo estão tentando descobrir quem está por trás dos misteriosos cartões-postais antinazistas, eles apelidam o suspeito desconhecido de “Klabautermann”. O Klabautermann é uma criatura folclórica, um duende marinho que ajuda (ou condena) embarcações e seus tripulantes. Na edição brasileira, o termo escolhido foi “solerte”, que designa alguém que faz algo por métodos escusos ou escondidos.
A tradutora também contou de coincidências entre o livro de Fallada e outro trabalho que surgiu na mesma época, o livro Olga: uma comunista nos arquivos da Gestapo. Olga esteve presa na Alemanha nazista, em situação que acabava dialogando intertextualmente com o destino do casal Quangel. Por fim, a tradutora lembrou uma frase de Herta Müller: “A literatura não pode mudar isso [o fato de existir o totalitarismo]. Mas ela pode – olhando para trás – usar a linguagem para criar uma verdade que mostre o que acontece dentro de nós e ao nosso redor quando os valores se perdem.”



O professor Jorge de Almeida, professor de teoria literária e literatura comparada da USP, abordou a estrutura e o conteúdo do livro. Um aspecto importante é o fato de a edição brasileira trazer ao final os anexos do processo e outros documentos, incluindo fotografias, do casal Hampel, que inspirou o romance, trazendo o elemento de historicidade. 

O romance foi escrito por Fallada em menos de um mês, em um ritmo frenético, muitas vezes sob o efeito de drogas – o autor teve ao longo de toda sua vida problemas com álcool e morfina, por exemplo. Esta marca se traduz na leitura como uma fluência hipnótica e sufocante, que também tem a ver com o conteúdo. O livro trata de pessoas comuns, em um edifício em um bairro de classe média baixa, pessoas que acompanham os grandes movimentos históricos de maneira totalmente alheia a seu desenrolar. 

Os personagens, mesmo os protagonistas, que encarnam a heroica resistência, são ambíguos. Os Quangel admitem terem apoiado o partido nazista, no começo. Mesmo aqueles que cometem atrocidades não o fazem por motivação ideológica, e sim por seus próprios interesses mesquinhos e individuais. Somadas, essas individualidades não formam uma comunidade, e sim resultam no grande horror. Cada um está tentando buscar sua própria sobrevivência, em uma sociedade aos pedaços, na qual o medo é onipresente. 

O narrador de Fallada, onisciente em terceira pessoa, usa fortemente o recurso do discurso indireto livre, dando voz ao fluxo de pensamentos dos personagens e também comentando sobre seus destinos. Isso ajuda a criar e transpor para a página a intimidade e a temporalidade do medo que domina Berlim, elemento estético que transborda da página. O livro é uma ode às pequenas resistências, esquecidas pela história mas sempre louvadas pela literatura e pela arte. 

Logo o prof. Márcio Seligmann-Silva, da Unicamp, especialista em teoria literária e temas como literatura de testemunho e memória das ditaduras, tomou a palavra. Ele afirmou que se sentiu espantado pela atualidade do livro. Ele lembrou também que os manuscritos originais enviados por Fallada haviam gerado certo desconforto. O próprio também teve reconhecimento tardio. Isso é um sinal de que há épocas que não acolhem certas mensagens. 





O livro foi publicado pouco depois o Tribunal de Nuremberg acontecer, quando alemães foram condenados por crimes de guerra e crimes contra a humanidade. O professor lembrou que, em Nurmberg, ainda pouco se discutia sobre o horror do Holocausto. Mesmo esta consciência demorou algumas décadas para ser formada e absorvida. 

O livro de Fallada funciona como um túnel do tempo. O autor resgata o cotidiano em um bairro comum de Berlim, os personagens e figuras da época (alguns inspirados por pessoas da vida do autor), a experiência do totalitarismo e de instituições que representam isso, como a prisão e as polícias nazistas, a degradação da linguagem e da comunicação dentro de uma sociedade marcada pela violência. O romance trata da conversão dos Quangel de indiferentes ao regime para críticos e dissidentes, dispostos a dar sua vida para praticarem sua resistência moral e não se entregarem ao horror e à violência.

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