MISHIMA OU A VISÃO DO VAZIO


Autora do festejado Memórias de Adriano, a belga Marguerite Yourcenar (1903-1987) lança-se neste ensaio a um ousado desafio intercultural com o objetivo de tentar iluminar uma das mentes literárias que mais a fascinavam: o japonês Yukio Mishima. As motivações que cercam o suicídio do autor de Cores proibidas, afinal, sempre alimentaram a curiosidade de leitores mundo afora, teimando em perdurar como um mistério insondável, ao menos da perspectiva ocidental – mesmo que o próprio tenha tentado, ainda em vida e em vão, se justificar.

No dia 24 de novembro de 1970, Mishima prepara sua morte com minúcia. Está com 45 anos. Sua obra é ampla. Alcançou a glória mundial. Ele quer que seu suicídio obedeça em todos os aspectos aos rigores do rito exigido há séculos pela tradição de seu país, no meio em que decidiu viver religiosa, social, literária e politicamente: ele rasga o próprio ventre, antes de se fazer decapitar pela espada de um amigo. Morte a um só tempo terrível e exemplar, pois de certa forma une-o com profundidade ao vazio metafísico que fascinou o poeta e romancista japonês desde sua juventude.

Marguerite Yourcenar coloca todo seu talento literário e sua perspicácia a serviço dessa aventura humana, pela qual ela experimenta, de modo simultâneo e paradoxal, familiaridade e estranhamento. Sua análise se articula a partir de alguns momentos da vida e da obra de Mishima: a angústia e a atonia juvenis retratadas em Vida à venda, O marinheiro que perdeu as graças do mar e a tetralogia Mar da Fertilidade, espécie de “testamento literário” do autor; a decepção de Mishima ao ver o Prêmio Nobel que esperava ganhar ir para o mestre e amigo Yasunari Kawabata (que também morrerá, depois, por suicídio); os anos perturbados que o levaram a “reforjar” seu corpo; e, em segundo plano, a política, a ação e a obsessão com o seppuku; a morte, enfim. 

A autora especula, no plano pessoal do retratado, os antecedentes que, direta ou indiretamente, acabariam por contribuir para engendrar a determinação de Mishima pelo próprio fim. Um deles é personificado na figura da avó, mulher de personalidade notoriamente doentia, ainda que comovente, presente no crescimento e na formação do neto de forma opressiva, tendo-o confinado numa espécie de realidade paralela, marcada por crises histéricas, e onde ela, sequela própria de seus tormentos, gostava de vê-lo vestido de garotinha.

Não há como não se impressionar com a frieza tipicamente oriental com que Mishima vai se dedicar ao intento suicida. Yourcenar refaz os momentos imediatamente anteriores ao ato final, cujo desconcerto já inevitável é acentuado pela serenidade do escritor também comprometido até o fim com seu ofício. Nos instantes derradeiros de vida, Mishima dirige sua determinação aos detalhes do ritual que abreviarão sua vida, assim como no cumprimento de seu último deadline. Como Yourcenar nos conta, na noite anterior à morte, Mishima jantou com os afiliados (aqueles que o ajudarão a morrer) e retirou-se ao escritório para revisar seus últimos rebentos editoriais, preparando em paralelo os chumaços de algodão que servirão para “impedir que suas tripas se esvaziem durante as convulsões de agonia.”

Assim, dentro de um modelo de estudo crítico, uma grande escritora do Ocidente investiga e tenta desmontar os mecanismos da psicologia de um grande escritor do Oriente, expondo as ambições, os triunfos, as fraquezas, os desastres interiores e, finalmente, a coragem de uma figura emblemática das artes japonesas do século XX.

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MARGUERITE YOURCENAR

Marguerite Yourcenar nasceu em 1903, em Bruxelas, de pai francês e mãe de origem belga. Cresceu na França, mas foi principalmente em outros países que ela viveu em seguida: Itália, Suíça, Grécia, e instalando-se depois na ilha de Mount Desert, na costa noroeste dos Estados Unidos, até sua morte, em 1987. Foi a primeira mulher eleita para a Academia Francesa de Letras, em 1980. Sua obra compreende, entre outros, o romance histórico Memórias de Adriano (edição original: 1951/última edição brasileira: 2005), que lhe rendeu reputação mundial, além de Contos orientais (1963), Tempo, esse grande escultor (1983) e A obra em negro (1968), que lhe rendeu por unanimidade o Prix Femina naquele ano.