O mundo fantástico de E.T.A. Hoffmann

Hoffmann dispensa apresentações: o alemão influenciou outros grandes escritores, como Dostoiévski e Edgar Allan Poe.

Ernst Theodor Wilhelm Hoffmann nasceu em Königsberg, na Prússia Oriental, em 1776. Desenvolveu carreira como jurista, atuando em tribunais de apelação em Berlim e em Varsóvia. Mas desde cedo já demonstrava inclinação para as artes, como pintura, teatro e, sobretudo, música clássica (era admirador de Mozart, de quem adotou o nome Amadeus em substituição a Wilhelm), passando a dedicar-se a tais paixões de modo integral a partir de 1808.

Foi homenageado por Jacques Offenbach com a ópera Os contos de Hoffmann, baseado em três histórias do autor. De saúde permanentemente frágil, agravada pelo abuso de álcool, ele seguiu produzindo até o fim da vida, inclusive ditando a um escriba quando sua condição motora já estava comprometida por uma paralisia progressiva que se mostraria fatal. Faleceu de forma precoce em 25 de junho de 1822, aos quarenta e seis anos de idade.



Por esta casa, tem publicados o romance Reflexões do gato Murr (2013), a coletânea O reflexo perdido e outros contos insensatos (2017) e Os elixires do diabo (2022).


Reflexões do gato Murr  (DISPONÍVEL TAMBÉM EM E-BOOK)
Tradução: Maria Aparecida Barbosa

Se um gato-narrador já seria uma opção narrativa ousada na literatura de qualquer autor contemporâneo, que dizer da Alemanha do início do século XIX? Pois é essa a iconoclastia proposta por E.T.A. Hoffmann em Reflexões do gato Murr, obra de grande comicidade e irreverência, em que o bichano evocado no título, metido a erudito e cuja personalidade passa longe da modéstia, dedica-se a produzir a própria biografia com o intuito de legar à posteridade o registro de sua felina e brilhante passagem por esta existência.

Assim, o petulante Murr, em meio a reflexões filosóficas e divagações mundanas, repassa ao leitor os momentos marcantes de sua vida, desde a primeira mão humana que o recolhe para pô-lo diante de uma generosa tigela de leite, até as danações de sua vida adulta, que incluem, por exemplo, a peculiar amizade com o poodle Ponto; o amor malfadado pela beldade bichana Miesmies; e o truculento acerto de contas “a dentadas” com o gatuno pintalgado que a roubou dele. Murr também critica seus pares “filisteus”, aqueles desprovidos de qualquer erudição – o que não deixa de ser uma ironia de Hoffmann sobre os hábitos burgueses que ele condenava.

A originalidade de 
Reflexões do gato Murr, no entanto, não se resume à narrativa feita pelo gato-autor: como nos adverte o editor da obra, um acidente de edição teria impresso, no mesmo livro, o manuscrito de Murr e o diário do amo do bichano, o compositor Johannes Kreisler, que originalmente o gato utilizou como suporte de suas memórias. A abordagem bem-humorada cede, então, à tensão da trama paralela. Kreisler é o protótipo do artista genial romântico, que luta para tentar manter a integridade de sua arte, sem concessões, o que para qualquer artista parece significar uma utopia. 

Mestre de capela na corte de uma decadente família real, ele é a testemunha ocular das intrigas e conspirações que permeiam as relações entre nobres e subalternos. A profusão de situações e personagens bizarros – magos charlatões, o affair de Kreisler com a princesa Júlia, um príncipe com síndrome de Peter Pan, religiosos patéticos – não encerra uma trama fechada, servindo muito mais como uma crítica de valores do autor em relação ao sistema político monarcal, que fenecia na Alemanha. As pontas da trama em aberto, que poderiam indicar um eventual interesse de Hoffmann por uma continuação, talvez se expliquem, também, pelo fato de o autor ter morrido antes de ter conseguido efetivamente finalizar o romance. No entanto, elas não comprometem o resultado, pelo contrário: dão à obra uma aura “moderna”, e acabam por instigar o leitor a, ele mesmo, completar as peças desse instigante quebra-cabeça.

 A mistura improvável de gêneros e a originalidade na forma fazem de Reflexões do gato Murr um livro de inventividade ímpar e frescor cômico atemporal, assinado por um dos mais clássicos autores da história literária alemã.



Tradução: Maria Aparecida Barbosa

Esta coletânea, intitulada O reflexo perdido e outros contos insensatos propõe um recorte abrangente e revelador da obra de E. T. A. Hoffmann (1776–1822). Os textos atestam o virtuosismo estilístico e temático do autor, que se tornou um dos principais expoentes do Romantismo alemão por sua originalidade, irreverência e iconoclastia.

A difusão das fronteiras entre realidade e ficção, a intertextualidade com seus contemporâneos (inclusive “emprestando” personagens de outros autores), o teor filosófico com que envolve seus temas fantásticos e de horror: essas são algumas marcas de Hoffmann que tiveram grande influência na literatura alemã posterior a ele. Sobre o princípio que permeia esta edição, o prefácio da organizadora, citando o autor, explica: “a poesia deve estar imbuída de fecunda fantasia, as personagens cheias de vida devem ter feições plásticas delineadas de modo a envolver com força mágica [...]”. 

Está incluída na coletânea a narrativa fantástica “O Homem-Areia”, que tornou Hoffmann conhecido no Brasil (indiretamente, uma vez que o texto é citado por Sigmund Freud em seu ensaio “Das Unheimliche” [“O Inquietante”], que trata da literatura que causa medo). Outro clássico em nova tradução é “O Quebra-Nozes e o Rei dos Camundongos”, selecionado “não pelo exclusivo fato de ter imortalizado Hoffmann no âmbito do balé”, como explica o prefácio, “mas também por ser um conto de horror que explora de maneira vertiginosa a inclusão de personagens duplos”. 

O conto do título (“O reflexo perdido ou As aventuras da noite de São Silvestre”) se inscreve na tradição literária do Fausto, já que o melancólico protagonista Erasmus Spikher acaba, em seu desejo por coisas mundanas, firmando um pacto que lhe custa seu reflexo. Nesta história, Hoffmann inclui o personagem Peter Schlemihl, criado por Adalbert von Chamisso, e também faz um aceno aos naturalistas e a Alexander von Humboldt, mostrando um escritor extremamente atento ao momento literário e científico em que vivia.

A ficção “O Conselheiro Krespel ou O violino de Cremona”, bem como os trechos dos ensaios “Kreisleriana” (atribuídos a Kreisler, o músico de Reflexões do gato Murr), mostram outra paixão do autor:  a música. As narrativas são pontuadas por suas ideias estéticas — Hoffmann também foi compositor de óperas, algumas de razoável sucesso, como Undine —,incluindo críticas ao que a tradutora chama de “malefícios que a bem-intencionada tentativa de determinação e explicação da arte podem provocar[...]”.

Em “As minas de Falun”, Hoffmann resgata temas elementares da cultura germânica e cria um conto de terror recheado de figuras poéticas românticas. O prefácio pondera que o conto “está imbuído da questão fundamental do anacronismo poético, que fora sintetizada por Johann Peter Hebel[e] que reincide em Trakl, Kandinsky e tantos outros poetas modernistas. Isso nos permite então, novamente, pensar no escritor Hoffmann destituído de rígidas amarras do século XIX, e alçá-lo à categoria de atemporal e profundamente contemporâneo.”



Tradução: Maria Aparecida Barbosa

A Estação Liberdade publica Os elixires do Diabo, seu terceiro livro de E.T.A. Hoffmann, alemão que influenciou Dostoiévski e Edgar Allan Poe.
O monge capuchinho Medardo, narrador para lá de carismático, revela aos leitores como foi que se envolveu num mistério contra a sua vontade. Após tomar um gole de um vinho suspeito, ele deixa o mosteiro em que vive, abandona o hábito e vai a Roma.

Na jornada, uma espécie de busca pela própria identidade que não cessa de fragmentar-se, Medardo se depara com uma série de figuras curiosas, desde aristocratas, passando por um excêntrico peruqueiro, até o Diabo em pessoa, segundo ele. Confronta-se também com seu duplo em algumas ocasiões, e a ambiguidade dos personagens assume contornos literários que dão à história, já muito intrigante, nova camada de complexidade narrativa que atrai ainda mais ao desfecho.

O tema do duplo foi explorado por muitos autores, como os clássicos Dostoiévski em seu romance O duplo e Edgar Allan Poe em seu conto “William Wilson”, que comprovadamente leram Hoffmann.
Os elementos fantástico, gótico e detetivesco estão todos em Os elixires do Diabo, também. Características do Romantismo, período a que essa obra se vincula, aparecem em abundância, como na personagem feminina Aurélia, elevada ao status de santa e salvadora; e na presença constante da figura diabólica, mefistofélica, o que em parte, aliás, aproxima a obra ao Fausto de Goethe, autor contemporâneo a Hoffmann.

Os elixires do Diabo comporta muito. Estejam seus constituintes em plena excelência de forma ou em moldes embrionários, fato é que a força da realidade entra em contato com o poder da imaginação, o terreno liga-se ao excelso, e o resultado é uma polifonia que representa a vida como só os clássicos conseguem-na representar. Livro para ler, reler e colocar na lista de livros favoritos de nossos autores prediletos.




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